Usucapião Extraordinário e a Resolução da Controvérsia Acerca do Módulo Mínimo Municipal (Tema Repetitivo 985 do STJ)
Debora Cristina de Castro da Rocha[1]
Claudinei Gomes Daniel[2]
Edilson Santos da Rocha[3]
1. RESUMO
Em julgamento sob o rito dos recursos especiais repetitivos (Tema 985)[4], o Superior Tribunal de Justiça a partir do precedente do Supremo Tribunal Federal no RE 422.349[5], segundo o qual, se preenchidos os requisitos do artigo 183 da Constituição Federal[6], o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não poderia ser obstado por legislação infraconstitucional mediante o estabelecimento de módulos urbanos na área em que o imóvel estivesse situado, fixou a tese de que o reconhecimento da usucapião extraordinária[7], mediante o preenchimento de seus requisitos específicos não pode ser impedido em razão de a área discutida ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal.
Pacificado o entendimento pela decisão vinculante supramencionada, milhares de ações antes suspensas nos tribunais do país poderão ser resolvidas com a aplicação do precedente qualificado[8].
2. CONTROVÉRSIA ACERCA DO MÓDULO MÍNIMO MUNICIPAL NA USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA – STJ TEMA 985
A questão fora submetida a julgamento no Tema/Repetitivo 985 do Superior Tribunal de Justiça, cabendo ao Tribunal definir se o reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento de seus requisitos específicos, poderia ser obstado em razão de a área usucapienda ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal.
O pedido pelo recorrente pautado na afetação dos Recursos Especiais: REsp 1667842/SC[9] e REsp 1667843/SC[10], culminou na suspensão da tramitação de milhares de processos em todo território nacional, inclusive os que tramitavam nos juizados especiais (art. 1.037, II, CPC)[11], obstando inclusive a propositura de novas ações, bem como a sua distribuição, não se aplicando, todavia, o sobrestamento às transações efetuadas ou que viessem a ser concluídas.
O recorrente defendia a impossibilidade de aquisição da propriedade por meio de usucapião, sempre que a área do imóvel fosse menor do que o módulo urbano estabelecido pela legislação municipal.
No caso concreto, o Tribunal de origem entendeu pela possibilidade da aquisição da propriedade por meio de usucapião extraordinária, mesmo quando a área usucapienda representasse área inferior à estabelecida pelo módulo urbano fixado em legislação municipal.
3. PRECEDENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO RE 422.349 – MÓDULO MINIMO NA USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA
Irresignada, a parte vencida recorreu perante o STJ, que diante da celeuma firmou tal entendimento fundando-se em precedente da Terceira Turma do STJ, que enfrentou matéria semelhante cristalizada pela seguinte tese perfilhada: O reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel. Menciona-se, ilustrativamente, a seguinte ementa
RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE USUCAPIÃO. USUCAPIÃO ESPECIAL URBANA. REQUISITOS DO ART. 183 DA CF/88 REPRODUZIDOS NO ART. 1.240 DO CCB/2002. PREENCHIMENTO. PARCELAMENTO DO SOLO URBANO. LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. LEGISLAÇÃO MUNICIPAL. ÁREA INFERIOR. IRRELEVÂNCIA. INDEFERIMENTO DO PEDIDO DECLARATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. JULGAMENTO PELO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. REPERCUSSÃO GERAL. RE Nº 422.349/RS. MÁXIMA EFICÁCIA DA NORMA CONSTITUCIONAL. 1. Cuida-se de ação de usucapião especial urbana em que a autora pretende usucapir imóvel com área de 35,49 m2. 2. Pedido declaratório indeferido pelas instâncias ordinárias sob o fundamento de que o imóvel usucapiendo apresenta metragem inferior à estabelecida na legislação infraconstitucional que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e nos planos diretores municipais. 3. O Supremo Tribunal Federal, nos autos do RE nº 422.349/RS, após reconhecer a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, fixou a tese de que, preenchidos os requisitos do artigo 183 da Constituição Federal, cuja norma está reproduzida no art. 1.240 do Código Civil, o reconhecimento do direito à usucapião especial urbana não pode ser obstado por legislação infraconstitucional que estabeleça módulos urbanos na respectiva área em que situado o imóvel (dimensão do lote). 4. Recurso especial provido. (REsp 1360017/RJ, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 05/05/2016, DJe 27/05/2016) [g.n.]
Veja-se que o precedente paradigma tem como objeto, pleito pelo indeferimento do pedido declaratório sob o fundamento de que o imóvel usucapiendo apresenta área inferior à estabelecida na legislação infraconstitucional que dispõe sobre o parcelamento do solo urbano e nos planos diretores municipais.
4. MÓDULO MÍNIMO MUNICIPAL
Veja-se que no caso concreto, a celeuma se pauta na área do lote usucapido, quando o Tribunal de Justiça do Estado de Santa Catarina proferiu entendimento de que o fato de o imóvel possuir área inferior ao módulo estabelecido em lei municipal não obsta o processamento da ação que visa à usucapião extraordinária, constituindo mera irregularidade administrativa.
Por essa perspectiva, necessário asseverar, pois, que o Código Civil não exige que o imóvel tenha sido objeto de regular parcelamento do solo e atenda às posturas municipais e aos preceitos urbanísticos, situação que, caso acolhida, elegeria mais um requisito, não explicitado na legislação federal, para a aquisição da propriedade pela usucapião. Com efeito, transcreve-se a ementa abaixo
APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIO. RECURSO INTERPOSTO PELO MINISTÉRIO PÚBLICO SOB FUNDAMENTO DE QUE A ÁREA USUCAPIDA NÃO PREENCHE OS REQUISITOS DA LEI N. 6.766/1979. IRRELEVÂNCIA. NÃO É REQUISITO DA USUCAPIÃO QUE A ÁREA USUCAPIENDA ESTEJA REGULAR. PRECEDENTES DESTA CORTE. COBRANÇA DE IMPOSTO PREDIAL PELA MUNICIPALIDADE QUE LHECONFERE A APARÊNCIA DE LEGALIDADE. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. (fl. 171)
O recorrente apontou violação aos arts. 1.238, caput, do Código Civil; 4º, § 1º, da Lei nº 6.766/79; e 2º, caput, VI, “c”, e 39 da Lei nº 10.257/2001, sob o argumento de que não é possível a aquisição da propriedade por meio de usucapião, sempre que a área do imóvel for menor do que o módulo urbano estabelecido pela legislação municipal.
5. USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA
Destarte, em relação às questões urbanísticas relativas ao direito à moradia, e ao cumprimento da função social da propriedade, necessário se faz notar que há parâmetros já definidos que devem ser considerados para a formação, planejamento e organização de cidades mais justas.
Por outro lado, tais critérios urbanísticos são desconsiderados pelo Código Civil na hipótese de declaração de usucapião extraordinária, quando este aduz em seu artigo 1.238, que a usucapião extraordinária pode ser reconhecida para aquele que exercer, durante 15 anos, posse mansa, pacífica e ininterrupta. Podendo pleitear ao juiz que declare a propriedade por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis.
Evidencia-se, portanto, que a modalidade de usucapião extraordinária consiste em uma forma de aquisição da propriedade pela posse prolongada. Para que o possuidor do imóvel tenha direito a usucapião extraordinária, são necessários, portanto, que possua o bem pelo prazo igual ou superior a 15 (quinze) anos, além de exercer posse mansa, pacífica e ininterrupta da propriedade.
6. CONCLUSÃO
Portanto, diante do preenchimento dos requisitos legais para aquisição originária da propriedade pelo autor da ação, o STJ negou provimento ao recurso especial para, em consonância com as instâncias ordinárias, afirmar a inexistência de impedimento para que imóvel urbano, cuja área, ainda que inferior ao módulo mínimo estabelecido pela legislação municipal, possa ser objeto da usucapião extraordinária prevista no art. 1.238 do cc/2002 e seu parágrafo único, sem qualquer outra restrição.
Para os fins repetitivos, foi fixada a seguinte tese: “O reconhecimento da usucapião extraordinária, mediante o preenchimento dos requisitos específicos, não pode ser obstado em razão da área usucapienda ser inferior ao módulo estabelecido em lei municipal.”
[1] Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2010), advogada fundadora do escritório DEBORA DE CASTRO DA ROCHA ADVOCACIA, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico, com atuação nos âmbitos consultivo e contencioso; Doutoranda em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba; Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba; Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e Pós-graduanda em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (EPD); Professora da pós-graduação do curso de Direito Imobiliário, Registral e Notarial do UNICURITIBA, Professora da Escola Superior da Advocacia (ESA), Professora do Curso de Pós-graduação em Direito Imobiliário Aplicado do Grupo Kroton Educacional, Professora da Pós-graduação da Faculdade Bagozzi e de Direito e Processo do Trabalho e de Direito Constitucional em cursos preparatórios para concursos e para a OAB; Pesquisadora do CNPQ pelo UNICURITIBA; Pesquisadora do PRO POLIS do PPGD da UFPR; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/subseção SJP triênio 2016/2018, Vice presidente da Comissão de Fiscalização, Ética e Prerrogativas da OAB/subseção SJP triênio 2016/2018; Membro da Comissão de Direito Imobiliário e da Construção da OAB/seção Paraná triênio 2013/2015 e 2016/2018; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da Associação Brasileira de Advogados (ABA) Curitiba; Membro da Comissão de Direito à Cidade da OAB/seção Paraná; Membro da Comissão do Pacto Global da OAB/seção Paraná; Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/seção Paraná; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM; Segunda Secretária da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ); Palestrante, contando com grande experiência e com atuação expressiva nas áreas do Direito Imobiliário, Urbanístico, Civil, Família e do Trabalho, possuindo os livros Reserva Legal: Colisão e Ponderação entre o Direito Adquirido e o Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado e Licenciamento Ambiental Irregularidades e Seus Impactos Socioambientais e vários artigos publicados em periódicos, capítulos em livros e artigos em jornais de grande circulação, colunista dos sites YesMarilia e do SINAP/PR na coluna semanal de Direito Imobiliário e Urbanístico do site e do programa apresentado no canal 5 da NET – CWB TV, na Rádio Blitz.net e na Central TV HD no canal 525 da Net. [2]Acadêmico de Direito pela Faculdade Anchieta de Ensino Superior do Paraná – FAESP (Centro Universitário UNIFAESP), e colaborador no escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Secretário de Presidência do Sindicato dos Advogados do Estado do Paraná. Produtor do Programa SINAP NO AR, que vai ao ar no Canal 5 da Net e transmitido na Rádio Blitz.net e na Central TV. E-mail: claudinei.dcr.adv@gmail.com [3] Controller Jurídico pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Acadêmico de Direito pela Faculdades da Industria – FIEP. e-mail: edilson.dcr.adv@gmail.com. [4] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. Tema/Repetitivo 985. Controvérsia n. 22/STJ (Direito Civil). Disponível em: < http://www.stj.jus.br/repetitivos/temas_repetitivos/pesquisa.jsp?novaConsulta=true&tipo_pesquisa=T&cod_tema_inicial=985&cod_tema_final=985 > Acesso em: 10 jan. 2021. [5] Brasil. Supremo Tribunal Federal. RE 422349. Órgão julgador: Tribunal Pleno. Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI. Julgamento: 29/04/2015. Publicação: 05/08/2015. Disponível em: < https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search?classeNumeroIncidente=RE%20422349&base=acordaos&sinonimo=true&plural=true&page=1&pageSize=10&sort=_score&sortBy=desc&isAdvanced=true&origem=AP > Acesso em: 10 jan. 2021. [6] CF. Art. 183. Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural. [7] A usucapião extraordinária é aquela prevista no artigo 1.238, do Código Civil, segundo o qual “aquele que, por quinze anos, sem interrupção, nem oposição, possuir como seu um imóvel, adquire-lhe a propriedade, independentemente de título e boa-fé; podendo requerer ao juiz que assim o declare por sentença, a qual servirá de título para o registro no Cartório de Registro de Imóveis” [8] Previsto no artigo 976 e seguintes do CPC/2015, o IRDR é um incidente que pode ser provocado perante os tribunais de segunda instância quando houver repetição de processos com idêntica controvérsia de direito e risco de ofensa aos princípios da isonomia e da segurança jurídica. [9] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1667842 / SC (2017/0099229-8) autuado em 08/05/2017RRC. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%201667842 > Acesso em: 10 jan. 2021. [10] Brasil. Superior Tribunal de Justiça. REsp nº 1667843 / SC (2017/0099186-0) autuado em 08/05/2017. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&termo=REsp%201667843 > Acesso em: 10 jan. 2021. [11] Art. 1.037. Selecionados os recursos, o relator, no tribunal superior, constatando a presença do pressuposto do caput do art. 1.036 , proferirá decisão de afetação, na qual: (…) II – determinará a suspensão do processamento de todos os processos pendentes, individuais ou coletivos, que versem sobre a questão e tramitem no território nacional; (…)