Debora Cristina de Castro da Rocha[1]
Edilson Santos da Rocha[2]
A Lei das Incorporações[3] (Lei 4.591/64) estabelece as regras e diretrizes para a promoção de incorporações imobiliárias no Brasil, definindo quem pode promover a incorporação, os requisitos legais e as responsabilidades das partes envolvidas de forma a garantir a segurança jurídica e a transparência no mercado imobiliário, protegendo os direitos dos adquirentes e promovendo o desenvolvimento ordenado dos empreendimentos imobiliários.
Segundo a lei, a incorporação imobiliária pode ser promovida tanto pelo proprietário do terreno quanto pelo promitente comprador, seu cessionário ou permutante, conforme estabelecido no artigo 31, § 1º da Lei 4.591/64, mais conhecida como Lei das Incorporações.
Além disso, a legislação determina ser necessário que o incorporador tenha a posse do imóvel e a permissão para demolir, construir e alienar frações ideais do terreno aos futuros adquirentes, conforme o artigo 32, ‘a’ da Lei das Incorporações. Isso garante que o incorporador tenha o controle necessário sobre o terreno para realizar as obras e comercializar as unidades[4].
No entanto, se a incorporação fracassar e não estiver submetida ao regime legal da afetação patrimonial, que confere poderes à comissão de representantes dos adquirentes[5] para prosseguir com a obra, a promessa ou a permuta celebrada entre o proprietário e o incorporador poderá ser resolvida.
Em tal hipótese, as cessões ou promessas de cessão de direitos correspondentes à aquisição do terreno contratadas pelo incorporador com os adquirentes serão rescindidas. Quando ocorre a rescisão, as acessões (construções) erigidas no terreno consolidar-se-ão no patrimônio do proprietário do terreno, que deverá ressarcir os adquirentes.
Se os adquirentes tiverem que postular a indenização em juízo, seu crédito será garantido pelas acessões correspondentes às suas unidades e respectivas frações ideais, conforme o artigo 40 e seus parágrafos. O valor a ser indenizado a cada adquirente corresponde ao valor das acessões implantadas no terreno, na proporção do coeficiente de construção de cada unidade imobiliária.
A regra do artigo 40[6] fundamenta-se no princípio da vedação do enriquecimento sem causa e reproduz a norma geral de indenização das acessões e plantações implantadas de boa-fé em terreno alheio. Como consequência, as acessões erigidas no terreno consolidar-se-ão no patrimônio do proprietário do terreno, que deverá ressarcir os adquirentes, por sua vez, o terrenista só poderá alienar o terreno após efetivar esse ressarcimento.
Assim, quando falamos sobre acessões erigidas no terreno, estamos nos referindo às construções ou melhorias feitas no terreno durante o processo de incorporação imobiliária. Se a incorporação fracassar e o contrato entre o proprietário do terreno e o incorporador for rescindido, essas construções passam a fazer parte do patrimônio do proprietário do terreno.
No entanto, o proprietário do terreno tem a obrigação legal de ressarcir os adquirentes das unidades imobiliárias pelas melhorias feitas. Isso significa que ele deve compensar financeiramente os adquirentes pelo valor das construções realizadas. Esse ressarcimento é necessário para evitar o enriquecimento sem causa do proprietário, ou seja, para garantir que ele não se beneficie indevidamente das melhorias feitas com recursos dos adquirentes.
Conforme mencionado anteriormente, o proprietário só poderá alienar (vender ou transferir) o terreno após efetivar esse ressarcimento. Isso significa que ele não pode dispor do terreno até que tenha compensado todos os adquirentes pelas melhorias realizadas, como meio de proteção aos direitos dos adquirentes e garantir que eles sejam devidamente indenizados antes que o terreno possa ser negociado novamente.
Se os adquirentes tiverem que postular a indenização em juízo, ou seja, recorrer ao Poder Judiciário para obter a compensação devida, seu crédito será garantido pelas acessões correspondentes às suas unidades e respectivas frações ideais. Isso significa que, caso os adquirentes precisem buscar a indenização judicialmente, eles têm o direito de receber o valor correspondente às melhorias feitas no terreno, proporcionalmente ao coeficiente de construção de cada unidade imobiliária, garantindo assim, que cada adquirente seja compensado de forma justa e proporcional às melhorias realizadas em sua unidade específica.
A norma geral de indenização das acessões e plantações implantadas de boa-fé em terreno alheio[7] é reproduzida no artigo 40, garantindo que os adquirentes sejam devidamente indenizados pelas melhorias realizadas.
O STJ, ao julgar o Recurso Especial (RESP) 686.198-RJ[8], fez uma distinção clara entre as figuras do incorporador e do titular do terreno, que pode ser o permutante ou o promitente vendedor. Essa distinção é importante para entender as responsabilidades e direitos de cada parte envolvida na incorporação imobiliária.
A decisão do STJ afirma que, se a lei garante ao proprietário do terreno o direito sobre tudo o que foi construído no imóvel, é justo que ele indenize aqueles cujos recursos financiaram a obra.
Isso significa que, embora o proprietário do terreno tenha o direito sobre as construções realizadas, ele não pode se beneficiar dessas melhorias sem compensar financeiramente os adquirentes que investiram na construção, pois caso contrário, caracterizaria o seu enriquecimento sem causa, o que é vedado pela lei.
O princípio da vedação do enriquecimento sem causa impede que uma pessoa se beneficie indevidamente às custas de outra. No contexto da incorporação imobiliária, isso significa que o proprietário do terreno deve indenizar os adquirentes pelas melhorias feitas no imóvel, pois foram os recursos dos adquirentes que financiaram a obra.
A decisão do STJ destaca que, além do custo da construção, o proprietário do terreno não foi beneficiado com nenhuma outra parcela dos valores pagos pelos adquirentes. Portanto, ele não pode ser compelido a indenizar nada além da própria edificação, o que reforça a ideia de que a indenização deve ser justa e proporcional ao valor das melhorias realizadas.
Isso porque, além do custo da construção, o proprietário do terreno não recebeu nenhum outro benefício financeiro dos valores pagos pelos adquirentes das unidades imobiliárias, ou seja, o proprietário do terreno não obteve lucro adicional ou qualquer outra vantagem financeira além do valor correspondente às melhorias e construções realizadas no terreno.
Portanto, é considerado justo que o proprietário do terreno seja obrigado a indenizar os adquirentes apenas pelo valor das construções realizadas, não podendo ser compelido a pagar mais do que isso, pois não se beneficiou de outras parcelas dos valores pagos pelos adquirentes.
Tal interpretação está alinhada com o princípio da vedação do enriquecimento sem causa, que impede que uma pessoa se beneficie injustamente às expensas de outra, devendo o proprietário, portanto, compensar os adquirentes pelas melhorias feitas, mas não pode ser obrigado a pagar além do valor das construções, já que não recebeu outros benefícios financeiros.
O acórdão é considerado paradigmático uma vez que examina a complexa operação de incorporação imobiliária sob diferentes perspectivas, oferecendo uma visão abrangente e detalhada sobre as relações jurídicas envolvidas.
De uma parte, a posição do proprietário do terreno, na sua relação com o incorporador, deve ser equiparada à do consumidor, nos termos do artigo 2º do Código de Defesa do Consumidor (CDC)[9]. Isso significa que o proprietário do terreno é visto como um consumidor, enquanto o incorporador é considerado um fornecedor, conferindo dessa forma a proteção e os direitos previstos no CDC ao proprietário do terreno.
De outra parte, em face dos demais adquirentes, a relação jurídica do proprietário do terreno é de natureza civil. Isso significa que a relação entre o proprietário do terreno e os adquirentes das unidades imobiliárias é regida pelo direito civil, e não pelo direito do consumidor.
Dessa relação civil resulta a responsabilidade do proprietário do terreno de reparar os danos causados aos adquirentes, em atenção ao princípio da vedação do enriquecimento sem causa. Destacando as distintas relações jurídicas conformadoras da incorporação imobiliária e o direito dos adquirentes de se verem ressarcidos do que pagaram, além do custo das acessões, o acórdão ressalva seu direito de reaverem integralmente aquilo que foi pago.
Todavia, os valores não destinados à própria construção devem ser cobrados diretamente da incorporadora. Nesse sentido, o acórdão destaca as diferentes relações jurídicas que conformam a incorporação imobiliária, as quais envolvem o proprietário do terreno, o incorporador e os adquirentes das unidades imobiliárias, onde cada uma das partes tem direitos e obrigações específicos que devem ser respeitados para garantir a segurança jurídica e financeira de todos os envolvidos.
Os adquirentes das unidades imobiliárias têm o direito de serem ressarcidos pelo que pagaram, além do custo das acessões (melhorias e construções) realizadas no terreno, isso porque, se a incorporação fracassar, os adquirentes devem ser compensados não apenas pelo valor das construções, mas também por qualquer outro valor que tenham adimplido ao longo do processo.
Ou seja, os adquirentes têm o direito de reaver integralmente aquilo que foi pago, no que se inclui todos os valores investidos na aquisição das unidades imobiliárias, de forma a garantir que não sofram prejuízos financeiros devido ao fracasso da incorporação.
Entretanto, os valores que não foram destinados diretamente à construção devem ser cobrados diretamente da incorporadora, e não do proprietário do terreno, de forma a garantir que cada parte envolvida na incorporação seja responsabilizada de forma justa e proporcional.
Diante de toda a complexidade de uma resolução contratual e suas consequências jurídicas acima discorridas, é notório que a instituição do patrimônio de afetação na incorporação imobiliária é de extrema importância para garantir a segurança jurídica e financeira dos adquirentes e das partes envolvidas.
A instituição do patrimônio de afetação visa assegurar que os recursos destinados à construção sejam utilizados exclusivamente para esse fim, protegendo os interesses dos compradores e evitando o enriquecimento sem causa do proprietário do terreno.
O patrimônio de afetação separa o patrimônio do empreendimento imobiliário do patrimônio pessoal do incorporador, ou seja, os recursos financeiros e os bens do empreendimento são destinados exclusivamente à construção e conclusão do projeto.
Em caso de falência ou problemas financeiros do incorporador, os recursos do patrimônio de afetação não podem ser utilizados para pagar outras dívidas, garantindo que o projeto seja concluído e os adquirentes recebam suas unidades.
Ao assegurar que os recursos sejam utilizados exclusivamente para a construção, o patrimônio de afetação protege os interesses dos compradores, evitando que o proprietário do terreno ou o incorporador utilizem os recursos para outros fins, de forma a garantir que o dinheiro investido pelos adquirentes seja aplicado na conclusão do empreendimento.
O regime de afetação patrimonial foi instituído pela Lei nº 10.931/2004[10] e é um mecanismo que visa trazer maior segurança jurídica e financeira para os adquirentes de imóveis em incorporações imobiliárias, uma vez que em caso de falência ou problemas financeiros do incorporador, o patrimônio de afetação garante que os recursos destinados ao empreendimento sejam utilizados para concluir a obra e entregar as unidades aos adquirentes.
Portanto, optar pelo regime especial proporciona maior transparência e confiança no mercado imobiliário, uma vez que os adquirentes podem ter certeza de que seus investimentos estão protegidos e que o projeto será concluído conforme planejado.
Para que um empreendimento seja submetido ao regime de afetação patrimonial, é necessário que ele possua contabilidade própria, CNPJ exclusivo e finanças separadas, de forma a garantir que o patrimônio do empreendimento seja completamente separado do patrimônio do incorporador.
Conclusivamente, a instituição do patrimônio de afetação proporciona maior transparência e confiança no mercado imobiliário, uma vez que os adquirentes podem ter certeza de que seus investimentos estão protegidos e que o projeto será concluído conforme planejado. Essa confiança incentiva novos investimentos no setor imobiliário, contribuindo para o desenvolvimento sustentável do setor.
Por fim, a comparação entre o regime de afetação patrimonial e a rescisão de contrato sem esse regime evidencia a importância da afetação patrimonial. Enquanto o regime de afetação patrimonial oferece uma estrutura clara e segura para a conclusão do empreendimento e a proteção dos adquirentes, a ausência desse regime pode resultar em litígios e insegurança jurídica, prejudicando tanto os adquirentes, o proprietário do terreno, quanto o mercado imobiliário como um todo.
[1] Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2010), advogada fundadora do escritório DEBORA DE CASTRO DA ROCHA SOCIEDADE DE ADVOGADOS; Mestre em Direito Empresarial; Especialista em Direito Imobiliário, em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Constitucional; professora em várias IES do país; empresária da área da regularização fundiária; jornalista; colunista do Jornal Diário Indústria e Comércio; Apresentadora de TV; Palestrante; Escritora; Membro do Tribunal de Ética da OAB/PR, Vice-Presidente da Associação de Mulheres de Carreira Jurídica do PR, Diretora do Sindicato dos Advogados do Estado do Paraná.
[2] Advogado, Jornalista, Sócio Administrador do escritório Debora de Castro da Rocha Sociedade de Advogados e Diretor Jurídico na Empresa Domínio Legal Regularização de Imóveis – Especializada em Regularização Fundiária. Bacharel em Direito pelas Faculdades da Industria – FIEP. e-mail: edilson@dcradvocacia.com.br.
[3] BRASIL. Lei nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964. Dispõe sobre o condomínio em edificações e as incorporações imobiliárias. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 21 dez. 1964. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4591.htm. Acesso em: 29 nov. 2024.
[4] CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação Imobiliária. 4. ed., rev., atual. e ampl. (2. reimpr.). São Paulo: Forense, 2017.
[5] A comissão de representantes dos adquirentes proporciona uma voz coletiva aos adquirentes, permitindo que suas preocupações e interesses sejam ouvidos e considerados durante todo o processo de incorporação imobiliária. No contexto do patrimônio de afetação, a comissão busca assegurar que os recursos destinados à construção sejam utilizados exclusivamente para esse fim, conforme previsto pela Lei nº 10.931/2004.
[6] Art. 40. No caso de rescisão de contrato de alienação do terreno ou de fração ideal, ficarão rescindidas as cessões ou promessas de cessão de direitos correspondentes à aquisição do terreno.
§ 1º Nesta hipótese, consolidar-se-á, no alienante em cujo favor se opera a resolução, o direito sobre a construção porventura existente.
§ 2º No caso do parágrafo anterior, cada um dos ex-titulares de direito à aquisição de unidades autônomas haverá do mencionado alienante o valor da parcela de construção que haja adicionado à unidade, salvo se a rescisão houver sido causada pelo ex-titular.
§ 3º Na hipótese dos parágrafos anteriores, sob pena de nulidade, não poderá o alienante em cujo favor se operou a resolução voltar a negociar seus direitos sobre a unidade autônoma, sem a prévia indenização aos titulares, de que trata o § 2º.
§ 4º No caso do parágrafo anterior, se os ex-titulares tiverem de recorrer à cobrança judicial do que lhes for devido, somente poderão garantir o seu pagamento a unidade e respectiva fração de terreno objeto do presente artigo.
[7] O artigo 1.255 do Código Civil estabelece que aquele que semeia, planta ou edifica em terreno alheio perde, em proveito do proprietário, as sementes, plantas e construções. No entanto, se procedeu de boa-fé, terá direito a indenização. Isso significa que, embora as melhorias realizadas passem a integrar o patrimônio do proprietário do terreno, a pessoa que as realizou deve ser compensada financeiramente pelo valor dessas melhorias.
[8] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 686.198 – RJ (2004/0102746-0). Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Brasília, DF, 2004. Disponível em: https://www.stj.jus.br. Acesso em: 29 nov. 2024.
[9] BRASIL. Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 set. 1990. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8078.htm. Acesso em: 29 nov. 2024. Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final.
[10] BRASIL. Lei nº 10.931, de 2 de agosto de 2004. Dispõe sobre o patrimônio de afetação de incorporações imobiliárias, Letra de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Imobiliário, Cédula de Crédito Bancário, altera o Decreto-Lei nº 911, de 1º de outubro de 1969, as Leis nº 4.591, de 16 de dezembro de 1964, nº 4.728, de 14 de julho de 1965, e nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002, e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 3 ago. 2004. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2004/Lei/L10.931.htm. Acesso em: 29 nov. 2024.