Atualizado: 12 de jul. de 2022
Debora Cristina de Castro da Rocha[1]
Edilson Santos da Rocha[2]
Abner Augusto Meirelles[3]
Acerca da hipoteca e sua eficácia em relação ao adquirente de boa-fé, a matéria foi pacificada pelo disposto no corpo da Súmula 308 do STJ, a qual dispõe o seguinte: “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.” Diante de tal entendimento, se mostra válida a discussão acerca da utilização da hipoteca como garantia real na Incorporação Imobiliária e suas consequências práticas aos adquirentes das unidades imobiliárias, tratados aqui como terceiros de boa-fé.
Observa-se em nossa sociedade o quão dinâmico é o mercado imobiliário, novos negócios surgem todos os dias. Dia após dia, podem ser observadas cada vez mais aquisições de imóveis, visando a implantação de empreendimentos que virão a ser utilizados como moradia, ou mesmo, para uso comercial destinados a um sem número de adquirentes. As construtoras visam auferir lucros em decorrência dos investimentos realizados, todavia, mais do que lucratividade, tem-se que as construções de novos empreendimentos repercutem diretamente no sonho de toda a coletividade pautado na aquisição imobiliária.
Para tanto, devem ser aportados recursos financeiros de grandes proporções para a concretização do empreendimento, pois a construção de um edifício residencial, por exemplo, exige um grande investimento financeiro para que a consecução seja perfectibilizada de forma eficiente, no prazo e dentro dos padrões de qualidade aceitáveis, em consonância com o grau de exigência do consumidor alvo.
Todavia, uma minoria das empresas dispõe de recursos próprios para investir nesse mercado, o que acaba repercutindo diretamente na busca de investidores no mercado que visam lucro junto à implantação de determinado empreendimento, podendo tais investidores ser pessoas físicas, ainda que na maioria das vezes tratem-se de grandes agentes financeiros.
Pois bem, diante dessa necessidade de aporte financeiro para execução da obra, o instituto da hipoteca acaba se fazendo presente, pois, ultimando a captação de recursos para a construção do empreendimento, a hipoteca acaba sendo constituída, a fim de que o próprio imóvel que será construído no local seja utilizado como garantia real, trazendo assim benefícios para ambos os lados na relação acordada.
Todavia, não são raras as vezes em que a hipoteca do imóvel deixa de ser baixada, mesmo após a construção e venda das unidades que pertencem ao projeto, acarretando na sua manutenção na matrícula do imóvel já construído e comercializado, fato que causa espanto e preocupação a eventuais adquirentes que negociam a venda do imóvel diretamente com a construtora. Pois, no momento da realização do registro do bem, os novos proprietários se deparam com tal situação que impossibilita a realização da transferência do imóvel adquirido junto a determinada construtora ou incorporadora para o seu nome, justamente porque o referido bem fora utilizado como garantia hipotecária por determinada instituição financeira.
Em que pese tal fato gerar transtornos e até mesmo insegurança para o adquirente, cediço que a hipoteca nesses casos não tem eficácia, conforme depreende-se do disposto no corpo da Súmula 308 do STJ, a qual dispõe o seguinte:
[4] “A hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, anterior ou posterior à celebração da promessa de compra e venda, não tem eficácia perante os adquirentes do imóvel.”.
Desta forma, o adquirente se vê protegido pelo ordenamento jurídico em situações em que a instituição financeira demonstre o interesse de executar a garantia em questão, in casu, o imóvel hipotecado. Não são raras as situações em que o comprador já quitou o imóvel adquirido junto à construtora/incorporadora e essas não procedem à realização do repasse do valor da venda das unidades, quando deixam de arcar com a obrigação de restituição do crédito que obtiveram, permanecendo inadimplentes junto a instituição financeira, e consequentemente, mantendo a hipoteca sobre o imóvel, o que repercute na geração de inúmeros transtornos aos adquirentes dos imóveis que muitas vezes se obrigam a buscar a solução da controvérsia junto ao Poder Judiciário.
A súmula supramencionada acaba sendo de grande valia para o consumidor, tendo em vista que o adquirente não possui papel algum, tampouco responsabilidade na relação estabelecida entre o construtor e a instituição financeira responsável pela concessão do crédito, portanto, nada mais lógico que os efeitos gerados em decorrência dessa relação não recaiam sobre o comprador do imóvel. Neste sentido, são inúmeros os julgados que corroboram e se fundamentam no entendimento do Superior Tribunal de Justiça, demonstrando que a matéria se encontra devidamente pacificada, senão vejamos.
[5]“ADMINISTRATIVO. AGRAVO DE INSTRUMENTO. TUTELA DE EVIDÊNCIA. HIPOTECA FIRMADA ENTRE CONSTRUTORA E AGENTE FINANCEIRO. INEFICÁCIA CONTRA ADQUIRENTE DO IMÓVEL DE BOA-FÉ. SÚMULA 308 DO STJ. COBRANÇA DA DÍVIDA REMANESCENTE DA INCORPORADORA. POSSIBILIDADE. AFASTADA APENAS A GARANTIA REAL. 1. É ineficaz a hipoteca firmada entre agente financeiro e construtora perante o adquirente de boa-fé do imóvel, nos termos do disciplinado na Súmula nº 308 do STJ, com base na segurança jurídica e a proteção ao adquirente de boa-fé, que não pode ser penalizado por débito contraído exclusivamente pela incorporadora junto à instituição financeira. 2. Nada obstante à proteção do adquirente em detrimento da hipoteca em favor do credor, pode a dívida remanescente ser cobrada da incorporadora que a contraiu, afastando-se apenas a garantia real que se encontra em poder de terceiro de boa-fé.”
[6]“APELAÇÃO CÍVEL. PROMESSA DE COMPRA E VENDA. AÇÃO DE EXTINÇÃO DE GRAVAME HIPOTECÁRIO. PROCESSUAL CIVIL. VIA PROCESSUAL ESCORREITA. AÇÃO QUE ADOTOU CARÁTER DE JURISDIÇÃO CONTENCIOSA, COM A APRESENTAÇÃO DE CONTESTAÇÃO PELO BANCO, EM FACE DO QUAL HOUVE A INSTITUIÇÃO DO GRAVAME HIPOTECÁRIO. MÉRITO. QUITAÇÃO DO PREÇO. INEFICÁCIA DA GARANTIA PERANTE O ADQUIRENTE DE BOA-FÉ, TERCEIRO NA RELAÇÃO JURÍDICA ESTABELECIDA ENTRE A CONSTRUTORA E O AGENTE FINANCEIRO. SÚMULA N.º 308 DO STJ. APLICABILIDADE AO CASO DOS AUTOS. É assente na jurisprudência o entendimento no sentido de que, tendo honrado com a totalidade de suas obrigações, quitando todo o financiamento, o promitente comprador, adquirente de boa-fé, fica excluído dos ônus decorrentes da inércia da construtora, que não resgatou a hipoteca junto ao banco financiador da construção. Não tendo, o adquirente, qualquer participação na relação jurídica de direito substancial estabelecida entre o Banco e a construtora, a hipoteca é ineficaz em relação a ele. NEGARAM PROVIMENTO AO RECURSO. UNÂNIME.
Inquestionável, pois, que essa segurança jurídica deve ser propiciada ao consumidor, afinal, após a aquisição de determinado imóvel, seja para moradia, trabalho, ou até mesmo investimento, cria-se a expectativa de poder usar, gozar e dispor do bem, conforme melhor aprouver ao proprietário. Em uma situação como a abordada no presente artigo, certo que a morosidade e até mesmo a negativa em se proceder com o cancelamento e baixa efetiva da hipoteca na matrícula do imóvel, acarreta prejuízos não somente materiais ao adquirente, mas também morais, já que o consumidor acaba sendo tolhido dos seus direitos e atrelado a um imbróglio que nunca integrou, tampouco contribuiu para a sua ocorrência.
Por essa perspectiva, vale destacar que a Súmula 308 do STJ, reitera a diferenciação das responsabilidades provenientes da relação construtora – instituição financeira e construtora – consumidor.
[7]A hipoteca que o financiador da construtora instituir sobre o imóvel garante a dívida dela enquanto o bem permanecer na propriedade da devedora; havendo transferência, por escritura pública de compra e venda ou de promessa de compra e venda, o crédito da sociedade de crédito imobiliário passa a incidir sobre “os direitos decorrentes dos contratos de alienação das unidades habitacionais integrantes do projeto financiado” (art. 22 da Lei n. 4.864/1965), sendo ineficaz em relação ao terceiro adquirente a garantia hipotecária instituída pela construtora em favor do agente imobiliário que financiou o projeto. Assim foi estruturado o sistema e assim deve ser aplicado, especialmente para respeitar os interesses do terceiro adquirente de boa-fé, que cumpriu com todos os seus compromissos e não pode perder o bem que lisamente comprou e pagou em favor da instituição que, tendo financiado o projeto de construção, foi negligente na defesa do seu crédito perante a sua devedora, deixando de usar dos instrumentos próprios e adequados previstos na legislação específica desse negócio.
Importante destacar que, tanto nos casos de aquisição à vista, quanto naqueles em que o imóvel é financiado juntamente a instituição financeira, não se pode admitir a incidência dos efeitos provenientes da hipoteca firmada entre a construtora e o agente financeiro, cabendo ao consumidor unicamente a obrigação pelo pagamento do crédito disponibilizado pelo Banco correspondente ao financiamento imobiliário.
A presente análise decorre justamente da necessidade de elucidação de dúvidas relacionadas à segurança jurídica do consumidor que ao se deparar com uma situação como a relatada, deve antes de mais nada, ter inequívoca ciência de que o seu direito em relação ao imóvel permanecerá incólume, mesmo diante da flagrante irresponsabilidade que pode advir da conduta da parte contrária. Contudo, insta salientar que, revela-se imperioso o acompanhamento jurídico durante todas as etapas da aquisição imobiliária, a fim de se evitar situações como essas, ou então, antecipar-se na busca de soluções breves e favoráveis ao adquirente.
A Súmula 308 do STJ, juntamente à base teórica que a envolve, garante uma segurança que deveria ser óbvia ao consumidor, pois as relações jurídicas devem ser exercidas sempre pautadas no princípio da boa-fé. Portanto, se uma construtora comercializa unidades de determinado empreendimento, negligenciando seus deveres obrigacionais para com o agente financiador, está flagrantemente descumprindo as suas obrigações contratuais com o adquirente, em clara hipótese de quebra do dever de exercício da boa-fé nas relações estabelecidas, e por via de consequência, disseminando uma imagem negativa para o mercado imobiliário.
Certo que em hipótese alguma pode-se admitir a atuação com negligência por parte de construtores e incorporadores, no sentido de haver a comercialização de imóveis com terceiros e a percepção do pagamento em decorrência da comercialização, sem que sejam cumpridas as obrigações junto a instituição financeira, pois situações como essas impedem a transferência dos imóveis aos adquirentes, bem como o pleno exercício dos seus direitos de propriedade.
As construtoras ao obterem créditos junto aos bancos, estão também assumindo a responsabilidade de cumprir com o pagamento futuro, liquidando a dívida junto ao financiador, fato que torna impossível que a responsabilidade se transmita a terceiros. Em paralelo, não seria possível que a instituição financeira cobrasse de terceiro, dívida contraída por outrem, com isso, se torna obrigatória a baixa da hipoteca do imóvel já quitado, a fim de propiciar a transferência da titularidade do imóvel junto ao Cartório de Registro de Imóveis.
Por fim, cabe a ponderação de que nas relações imobiliárias todas as partes dependem umas das outras, neste caso, as construtoras dependem do crédito disponibilizado pela instituição financeira, bem como dos adquirentes para alienarem seus imóveis. O agente financeiro, por sua vez, necessita da restituição dos valores concedidos e o consumidor espera que o empreendimento seja finalizado e sua unidade seja entregue, conforme entabulado no contrato. Diante disso, deve-se buscar o maior equilíbrio e a maior transparência possível entre as partes envolvidas, pois somente assim será possível evitar situações como a abordada.
[1]Possui graduação em Direito pelo Centro Universitário Curitiba (2010), advogada fundadora do escritório DEBORA DE CASTRO DA ROCHA ADVOCACIA, especializado no atendimento às demandas do Direito Imobiliário e Urbanístico, com atuação nos âmbitos consultivo e contencioso; Doutoranda em Direito Empresarial e Cidadania do Centro Universitário Curitiba; Mestre em Direito Empresarial e Cidadania pelo Centro Universitário Curitiba; Pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho e em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst) e Pós-graduanda em Direito Imobiliário pela Escola Paulista de Direito (EPD); Professora da pós-graduação do curso de Direito Imobiliário, Registral e Notarial do UNICURITIBA, Professora da Escola Superior da Advocacia (ESA), Professora do Curso de Pós-graduação em Direito Imobiliário Aplicado do Grupo Kroton Educacional, Professora da Pós-graduação da Faculdade Bagozzi e de Direito e Processo do Trabalho e de Direito Constitucional em cursos preparatórios para concursos e para a OAB; Pesquisadora do CNPQ pelo UNICURITIBA; Pesquisadora do PRO POLIS do PPGD da UFPR; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/subseção SJP triênio 2016/2018, Vice presidente da Comissão de Fiscalização, Ética e Prerrogativas da OAB/subseção SJP triênio 2016/2018; Membro da Comissão de Direito Imobiliário e da Construção da OAB/seção Paraná triênio 2013/2015 e 2016/2018; Presidente da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da Associação Brasileira de Advogados (ABA) Curitiba; Membro da Comissão de Direito à Cidade da OAB/seção Paraná; Membro da Comissão do Pacto Global da OAB/seção Paraná; Membro da Comissão de Direito Ambiental da OAB/seção Paraná; Membro do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário – IBRADIM; Segunda Secretária da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Jurídica (ABMCJ); Palestrante, contando com grande experiência e com atuação expressiva nas áreas do Direito Imobiliário, Urbanístico, Civil, Família e do Trabalho, possuindo os livros Reserva Legal: Colisão e Ponderação entre o Direito Adquirido e o Meio Ambiente Ecologicamente Equilibrado e Licenciamento Ambiental Irregularidades e Seus Impactos Socioambientais e vários artigos publicados em periódicos, capítulos em livros e artigos em jornais de grande circulação, colunista dos sites YesMarília e do SINAP/PR na coluna semanal de Direito Imobiliário e Urbanístico do site e do programa apresentado no canal 5 da NET – CWB TV, na Rádio Blitz.net e na Central TV HD no canal 525 da Net. [2]Assistente Jurídico pelo escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. Acadêmico de Direito pela Faculdades da Industria – FIEP. e-mail: edilson.dcr.adv@gmail.com. [3]Graduado em Direito pela Universidade Estácio de Sá, Pós-graduando em Direito Imobiliário, Notarial e Registral pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) e Assistente Jurídico no escritório Debora de Castro da Rocha Advocacia. E-mail: abner.dcr.adv@gmail.com [4] Súmula 308 do STJ. Disponível em: < https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_24_capSumula308.pdf > Acesso em: 07 abr. 2021. [5] TRF-4 – AG: 50239149220194040000 5023914-92.2019.4.04.0000, Relator: ROGERIO FAVRETO, Data de Julgamento: 26/11/2019, TERCEIRA TURMA [6] Apelação Cível Nº 70076792118, Décima Oitava Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Julgado em 26/04/2018). (TJ-RS – AC: 70076792118 RS, Relator: Pedro Celso Dal Pra, Data de Julgamento: 26/04/2018, Décima Oitava Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 02/05/2018 [7] Súmula 308 do STJ > disponível em : https://www.stj.jus.br/docs_internet/revista/eletronica/stj-revista-sumulas-2011_24_capSumula308.pdf